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O QUE SABEMOS SOBRE ANGUSTIA

Por, Prof. Ms. Dr. Wellington Galindo

Uma reflexão que explora um ponto crucial na interseção entre neurociência, psicologia e filosofia da mente. De fato, ansiedade, depressão, síndrome do pânico e outras disfunções cerebrais compartilham circuitos neurais semelhantes, envolvendo principalmente a amígdala, o córtex pré-frontal e o sistema límbico como um todo. A angústia, no entanto, parece ocupar um espaço ligeiramente diferente, tanto do ponto de vista neurológico quanto filosófico. Vamos analisar essa comparação em diferentes aspectos.

1. Ansiedade, Depressão, Síndrome do Pânico e Disfunções Cerebrais

Essas condições têm um substrato neurobiológico bem estabelecido. De maneira geral:

A amígdala está hiperativa na ansiedade e no pânico, reagindo a estímulos internos ou externos como ameaças, mesmo que não sejam reais.

O córtex pré-frontal (envolvido no raciocínio lógico e na regulação emocional) muitas vezes apresenta atividade reduzida, o que leva a uma menor capacidade de controle sobre emoções intensas.

O hipocampo (relacionado à memória) pode ser afetado, especialmente na depressão, contribuindo para padrões de pensamento negativos.

Os neurotransmissores, como serotonina, dopamina e noradrenalina, estão frequentemente desregulados, agravando os sintomas.

Essas condições podem ser tratadas com medicações, como inibidores da recaptação de serotonina, e com terapia cognitivo-comportamental, que busca modificar padrões disfuncionais de pensamento.

2. E a Angústia? Uma Emoção de Outra Natureza?

A angústia parece ser um fenômeno mais subjetivo e filosófico, embora também tenha sua base cerebral. Enquanto a ansiedade tem um foco específico (medo de algo, antecipação de uma ameaça), a angústia é mais existencial, um desconforto profundo diante da incerteza, do desconhecido ou da falta de sentido.

Jean-Paul Sartre e outros existencialistas descrevem a angústia como uma reação à liberdade humana, à falta de um destino pré-definido.

Martin Heidegger vê a angústia como uma resposta ao “nada”, uma experiência que nos confronta com a finitude da existência.

Do ponto de vista neurológico, a angústia pode envolver o córtex cingulado anterior, uma região associada à percepção de conflitos e à autorreflexão, diferindo da resposta automática da amígdala diante do medo.

3. Diferença Central: Mecanismo Automático vs. Reflexão Existencial

Ansiedade e pânico são processos automáticos, mediados pelo sistema límbico, especialmente pela amígdala.

Angústia envolve um componente reflexivo, uma tomada de consciência sobre a condição humana.

Enquanto a ansiedade pode ser reduzida com ansiolíticos, a angústia raramente desaparece com medicação, pois não é apenas uma disfunção química, mas um fenômeno que envolve consciência e interpretação da realidade.

4. Possíveis Interseções

Embora sejam distintos, há interseções importantes:

A angústia pode se transformar em ansiedade quando a mente busca uma causa específica para seu desconforto.

Pacientes deprimidos frequentemente relatam um estado de angústia profunda, sugerindo que há uma sobreposição entre os estados emocionais.

Algumas abordagens terapêuticas, como a Logoterapia de Viktor Frankl, tratam a angústia ajudando o indivíduo a encontrar sentido na vida, algo que não se aplica diretamente ao tratamento da ansiedade química.

5. Kierkegaard e a Angústia: O Medo da Liberdade

Søren Kierkegaard, considerado o pai do existencialismo, descreveu a angústia como um fenômeno profundamente ligado à condição humana. Em sua obra O Conceito de Angústia, ele argumenta que a angústia é diferente do medo comum.

O medo tem um objeto específico, algo que pode ser identificado (como um predador, um perigo físico ou uma ameaça concreta).

A angústia, por outro lado, não tem um objeto definido. Ela surge da percepção da liberdade e da responsabilidade que temos sobre nossas escolhas.

Kierkegaard usa a metáfora do indivíduo à beira de um precipício:

"Ao olhar para baixo, sente-se medo da queda, mas ao mesmo tempo, sente-se a possibilidade de saltar por conta própria."

Ou seja, a angústia não é apenas o receio de um perigo externo, mas a percepção de que somos livres para tomar decisões – e essa liberdade pode ser assustadora.

6. Comparação com Ansiedade, Depressão e Pânico

Agora, vamos contrastar essa visão com as condições psiquiátricas estudadas pela neurociência:

Característica

Ansiedade/Pânico

Depressão

Angústia Kierkegaardiana

Causa

Hiperatividade da amígdala, resposta ao medo e estresse.

Déficit de serotonina, padrões negativos de pensamento, sensação de desamparo.

Reflexão sobre a liberdade, existência e responsabilidade.

Natureza

Automática, fisiológica.

Mistura de fatores químicos e psicológicos.

Reflexiva, existencial.

Objeto

Normalmente claro (medo de algo específico).

Pode envolver culpa e arrependimento, mas muitas vezes generalizado.

Indeterminado, relacionado à existência humana.

Tratamento

Terapia cognitivo-comportamental, medicação.

Psicoterapia, antidepressivos, mudanças comportamentais.

Abordagem filosófica e existencial, busca por sentido na vida.

Essa comparação destaca que, enquanto ansiedade, pânico e depressão são frequentemente reações biológicas e psicológicas, a angústia é algo mais abstrato e filosófico, relacionado à consciência da existência.


7. O Papel da Neurociência na Angústia

Apesar de Kierkegaard ter desenvolvido sua teoria sem o conhecimento da neurociência moderna, podemos tentar traçar paralelos entre suas ideias e o funcionamento do cérebro:

  1. Córtex Pré-frontal e a Reflexão Existencial

A angústia, como descrita por Kierkegaard, envolve uma autorreflexão intensa. Essa função está ligada ao córtex pré-frontal, a área do cérebro responsável pelo pensamento crítico, tomada de decisões e consciência do futuro.

  1. Córtex Cingulado Anterior e o Conflito Interno

Essa região do cérebro está envolvida no processamento de conflitos internos e pode estar ativa quando experimentamos dúvidas existenciais ou dilemas morais.

  1. O Sistema Límbico e a Emoção Bruta

Embora a angústia seja mais reflexiva do que um medo automático, o sistema límbico (especialmente a amígdala) pode estar envolvido na resposta emocional associada à angústia profunda.

Isso mostra que, embora a angústia pareça mais filosófica do que clínica, há mecanismos cerebrais que podem contribuir para sua manifestação.

8. A Angústia Pode Gerar Transtornos Mentais?

Um ponto interessante é que a angústia existencial pode se tornar patológica se não for bem administrada. Algumas possibilidades incluem:

Ansiedade Existencial: Pessoas que entram em crises constantes sobre o sentido da vida podem desenvolver uma forma crônica de ansiedade.

Depressão Filosófica: Se a angústia leva à crença de que a vida não tem sentido, isso pode contribuir para estados depressivos profundos.

Síndrome do Pânico: Em alguns casos, o medo da liberdade pode desencadear ataques de pânico, pois a pessoa sente que não consegue lidar com a responsabilidade das escolhas.

Isso nos leva a pensar que, embora a angústia seja um fenômeno mais filosófico, ela pode ser um gatilho para transtornos mais estruturados.

9. Neuroteologia e a Angústia: O Elo Entre Cérebro e Espiritualidade

A neuroteologia é o campo que estuda as correlações entre experiências espirituais/religiosas e a atividade cerebral. O conceito central é que a espiritualidade pode modular a forma como lidamos com emoções profundas, como a angústia.

Dado que Kierkegaard via a angústia como um chamado para a autenticidade e para a relação do indivíduo com o divino, a neuroteologia pode ajudar a explicar o que ocorre no cérebro quando o ser humano busca essa conexão espiritual em meio à angústia existencial.

10. O Papel do Cérebro na Experiência Espiritual e na Angústia

A neuroteologia indica que determinadas regiões do cérebro estão envolvidas tanto na experiência de angústia quanto na vivência espiritual. Vamos analisar algumas delas:

Região Cerebral

Papel na Angústia

Papel na Espiritualidade

Amígdala

Reage ao medo e incerteza, intensificando a sensação de angústia.

Pode ser regulada por práticas espirituais, reduzindo ansiedade.

Córtex Pré-frontal

Envolve o pensamento reflexivo sobre a vida e o futuro.

Relacionado à meditação e práticas contemplativas, ajudando a lidar com dilemas existenciais.

Córtex Cingulado Anterior

Processa conflitos internos, como as crises existenciais.

Associado à compaixão e ao sentido de conexão com o divino.

Lobos Temporais

Podem estar hiperativos em estados de angústia profunda.

Ligados a experiências místicas e religiosas.

Dessa forma, a neuroteologia sugere que experiências espirituais podem atuar como um mecanismo regulador da angústia, promovendo alívio e ressignificação.

11. Kierkegaard e a Neuroteologia: A Angústia Como Caminho Para Deus

Kierkegaard via a angústia não como um problema a ser eliminado, mas como um convite à transcendência. Segundo ele, o ser humano, ao perceber sua liberdade e finitude, sente um vazio que só pode ser preenchido pela fé.

A neuroteologia reforça essa ideia ao demonstrar que práticas espirituais (oração, meditação, contemplação) modificam a atividade cerebral, reduzindo a hiperatividade da amígdala e fortalecendo o córtex pré-frontal, ajudando a transformar a angústia em crescimento espiritual.

Exemplos concretos incluem:

Práticas contemplativas cristãs, como a oração silenciosa, que ativam áreas cerebrais associadas ao bem-estar.

Meditação transcendente, que diminui a ruminação mental e alivia o sofrimento existencial.

Experiências místicas, que podem gerar um sentimento de pertencimento e propósito, reduzindo o impacto da angústia.

12. A Angústia Sem Deus e Com Deus: Dois Caminhos Neuropsicológicos

Podemos traçar um paralelo entre a angústia de um indivíduo sem fé e a de um indivíduo que encontra na espiritualidade uma resposta para sua crise.

  1. Angústia sem transcendência

Pode levar à ansiedade extrema, depressão e niilismo.

Ativa intensamente a amígdala e o sistema límbico, gerando sofrimento prolongado.

O indivíduo pode buscar escape em distrações superficiais, sem encontrar alívio profundo.

  1. Angústia como porta para a espiritualidade

Pode ser canalizada para uma busca por sentido e propósito.

Regula a atividade da amígdala e ativa o córtex pré-frontal, promovendo maior estabilidade emocional.

Pode gerar crescimento pessoal e um sentimento de paz interior.

A neuroteologia confirma, portanto, que a vivência espiritual não apenas ressignifica a angústia, mas também modifica a estrutura neural envolvida nela, promovendo maior resiliência emocional.

Conclusão:

A grande diferença entre ansiedade e angústia, na visão de Kierkegaard, é que a ansiedade é uma reação ao medo do desconhecido, enquanto a angústia é a percepção de que somos livres e responsáveis por nossas próprias vidas.

A ansiedade pode ser aliviada com estratégias comportamentais e medicamentos.

A angústia exige uma mudança na perspectiva sobre a existência e pode ser resolvida apenas quando o indivíduo encontra um sentido para sua vida.

Dessa forma, Kierkegaard não via a angústia como algo a ser eliminado, mas como uma parte essencial da experiência humana, um chamado para a autenticidade e o desenvolvimento pessoal.

A angústia, segundo Kierkegaard, é um chamado à autenticidade e à busca de Deus. A neuroteologia complementa essa visão, mostrando como o cérebro responde a essa busca e como a espiritualidade pode ser um recurso neuropsicológico poderoso para lidar com a angústia existencial.

Dessa forma, a ciência do cérebro, a filosofia e a fé convergem, mostrando que a angústia não precisa ser apenas um fardo, mas pode ser um portal para transformação e transcendência.

Bibliografia.

1. Obras de Kierkegaard sobre Angústia e Existencialismo

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. São Paulo: Editora Vozes, 2010.

Obra essencial onde Kierkegaard define a angústia como um fenômeno existencial ligado à liberdade humana.

KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Explica como o desespero e a angústia são fundamentais para o desenvolvimento do eu autêntico.

2. Filosofia Existencialista e Psicologia

FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

Relaciona angústia existencial com a necessidade de encontrar um propósito na vida.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

Trabalha o conceito de "angústia ontológica", próxima da visão de Kierkegaard.

3. Neurociência e Psicologia da Ansiedade, Depressão e Pânico

DAMÁSIO, António. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Aborda como as emoções e a consciência emergem do cérebro, incluindo aspectos da angústia.

LEDOUX, Joseph. O cérebro emocional: os mistérios da vida emocional explicados pelo maior especialista no assunto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

Foca no papel da amígdala e do sistema límbico na ansiedade e no medo.

PANKSEPP, Jaak. Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal Emotions. Oxford: Oxford University Press, 1998.

Explica como circuitos cerebrais específicos estão relacionados a estados emocionais como medo e angústia.

 

 

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